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(Curvelo e os 60 anos do Golpe Civil-Militar)


Por Newton VIEIRA*

 

“Mas não quero ir para mais longe,/desterrado,/porque a minha pátria é a memória.” (João Guimarães Rosa – Magma. Revolta)


Há sessenta anos, implantava-se o regime militar no Brasil, em decorrência de conspirações desde o início apoiadas pelo segmento civil da sociedade. Por duas décadas – e, de forma mais contundente, após o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968 –, o governo teve sinal verde para a tomada de medidas arbitrárias, como suspensão de direitos políticos e cassação de mandatos. Aposentadorias compulsórias, intervenções em sindicatos e universidades, censura à imprensa e às manifestações artísticas, prisões, exílios, torturas e desaparecimentos de opositores também se verificaram no período.

Para mostrar ou tentar mostrar o desenrolar dos fatos no Centro-Norte de Minas, sobretudo na minha Curvelo, elaborei este breve ensaio, a partir de textos por mim publicados em revistas, portais e livros, entre os quais Cavaleiros da Luz (antologia acadêmica), editado pela Armazém de Ideias.

Na presente publicação, acrescida de dados inéditos, identifiquei e eliminei dois ou três equívocos de artigos anteriores, ao emergir de novo mergulho em documentos e em releituras de obras de referência.

Longe de mim a pretensão de esgotar o assunto ou de considerar meu trabalho isento de falhas. Ao contrário, faço minhas as palavras de mestre António Feliciano de Castilho, quando o brilhante intelectual do século XIX deu à estampa sua tradução em português do Fausto, de Wolfgang von Goethe, feita com base em edição sa. Sob o título Advertência, Castilho assim se expressou: “Outros fariam ou farão melhor; eu fiz o que pude”. 

 

OS ANTECEDENTES

 

 

Convém dar um pulo aos idos de 1940 e 1950 para tomar conhecimento dos antecedentes. De certa forma, eles auxiliam na compreensão do tema em apreço.

No pós-guerra, a elite dirigente curvelana carregou no combate ao que chamou de “perigos do socialismo”. Fácil entender por que isso ocorreu. Data dessa época a infiltração socialista nos países do Leste Europeu, corolário do segundo grande conflito armado. A Rússia estendeu sua influência àquelas regiões ao empenhar-se na desocupação nazista. Teve início, então, a Guerra Fria, trazendo consigo a corrida armamentista, com os norte-americanos à frente do grupo adepto do capitalismo, no qual se inseria o Brasil. Impactada pela propaganda depreciativa que os Estados Unidos faziam chover sobre os russos, a Câmara Municipal de Curvelo não via com bons olhos a mudança dos sistemas políticos naquelas regiões do Velho Mundo. Por isso, em 12 de maio de 1949, aprovou voto de louvor à ponte aérea das potências anticomunistas em resposta ao assim chamado Bloqueio de Berlim (01).  Proposto pelo vereador José Lourenço Viana Filho, o doutor Juca, descobridor da miopia em Guimarães Rosa, o voto de louvor contou com o endosso dos vereadores Edmundo Diniz Leroy e Allu Viana Marques. 

A União Soviética havia interditado o o ao solo berlinense por ferrovia, rodovia e meios aquáticos. Queria o controle absoluto da cidade. Para suprir de alimentos a Berlim ocidental, a aliança capitalista teve de alçar mais de 200 mil voos em quase um ano, de 24/07/1948 a 12/05/1949. Dispendiosa façanha.

O furo desse bloqueio foi para os americanos, como salientou Edgar Luiz de Barros, “a batalha suprema da Guerra Fria. Com efeito, riscos de conflito atômico rondaram a população mundial, pois os Estados Unidos chegaram a estacionar bombardeiros em território britânico e dirigiram ameaças de ataque nuclear a Moscou (02).

De 1949 vamos para 1957. Nesse ano, o médico e intelectual Geraldo Vianna Espeschit, o doutor Espeschit, ocupava a presidência da Associação Comercial de Curvelo. Em reunião ordinária da entidade, conquanto o diretor José do Advento Barbosa discordasse, ele conseguiu aprovar moção de aplausos à Academia de Ciências de Moscou pelo lançamento do primeiro satélite artificial, o Sputnik 1(03). Lida em emissora internacional de rádio moscovita, a mensagem curvelana teve estrondosa ressonância nos meios políticos. Alguns viram no gesto do líder classista manifestação clara de apoio ao regime adotado atrás da Cortina de Ferro (expressão cunhada por Winston Churchill). Temendo maiores dissabores na vida particular e empresarial, doutor Espeschit procurou a imprensa e tratou de esclarecer o mal-entendido.  Ao jornal Estado de Minas ele declarou: “Não sou comunista. Sou até contrário àquele regime, pois sou, em Minas, um dos dirigentes do movimento monárquico, que repudia a doutrina soviética, mas um acontecimento artístico, literário, filosófico ou científico não pode ficar circunscrito às fronteiras de um país. É patrimônio de toda a humanidade.” (04)

Doutor Espeschit, com razão, pôs as barbas (ou os bigodes) de molho. Os ânimos estavam exaltados. Na edição de 29-9-1958, p. 2, o Jornal de Curvelo traria esta notícia: “O eleitor deve ficar alerta porque o comunismo é velhaco, sinuoso e traiçoeiro. Há em Curvelo vários chefes comunistas fichados trabalhando.”

Em 15/11/1959, realizou-se na cidade (não consegui identificar o local exato) comício promovido pelo Sindicato dos Tecelões, pela União Operária e pelo Diretório Municipal do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Em nome da agremiação partidária, discursou o doutor Vianna Espeschit. Dentre outras coisas, o autor de Dom Henrique, o Navegador declarou o seguinte: “O PTB almeja para o trabalhador um pouco do pão que ele mesmo amassou, um retalho da roupa que ele mesmo teceu e um pedaço do teto que ele mesmo edificou.” (05) Esse comício acendeu o alerta de vários setores da sociedade e, por outro lado, aumentou o entusiasmo do Sindicato, presidido por José Teófilo da Silva, de quem voltarei a falar. A instituição se tornou mais veemente na cobrança da melhoria das condições salariais e de segurança dos operários. Tanto que, no ano seguinte, sairia esta nota no jornal carioca Correio da Manhã:

  

Ameaçando entrar em greve, os tecelões da Fábrica Maria Amália, de Curvelo, através de seu sindicato, pediram a mediação da Delegacia Regional do Trabalho no sentido de que seja julgada uma ação trabalhista que se encontra no fórum da cidade há vários anos. A delegacia tomará as providências para evitar a paralisação dos serviços da indústria têxtil.” (06)


Poucos meses depois, as lideranças sindicais voltariam à carga, desta feita contra a atitude (ou a falta de atitude) de um magistrado: 


Porque o juiz de direito não julga as causas trabalhistas existentes no fórum local, os trabalhadores de Curvelo, através de uma comissão, irão a Belo Horizonte a fim de pedir a transferência da autoridade. A morosidade da Justiça Trabalhista naquela cidade vem sendo atribuída ao juiz, motivo por que os operários, apoiados por seu sindicato, pretendem sua remoção.” (07)


Com a posse de João Goulart, o Jango, na presidência da República, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) saiu da discrição em que até então se mantivera e se lançou na direção de “amplo processo de mobilização conservador-oposicionista”, interferindo em diversos segmentos: no meio parlamentar, nas entidades ligadas ao homem do campo, no movimento estudantil, nos sindicatos e em determinadas alas da Igreja Católica. Em 1962, criou dois órgãos para auxiliá-lo: a Ação Democrática Popular (ADEP) e a PROMOTTION S/A, “agência de publicidade encarregada de disseminar a propaganda política do Instituto na mídia, além de funcionar como financiadora de suas atividades” (08). Depois o IBAD ou a ser “somente um braço tático” do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). Dotado de “estrutura muito ampla e sofisticada”, o IPES “tinha como alvo estratégico não apenas derrubar o governo Goulart”, mas também tomar o poder do Estado e, uma vez estabelecido nele, “realizar seu projeto de classe”. Era o IPES uma demonstração da “força política da fração multinacional associada” (09).

Nesse contexto, intensifica-se a atuação da Igreja Particular de Diamantina, sob o báculo de dom Geraldo de Proença Sigaud (1909-1999), religioso da Congregação do Verbo Divino. Ele já havia atacado as ideias socialistas em texto inserido no livro Reforma Agrária – Questão de Consciência, de autoria do professor Plínio Corrêa de Oliveira, fundador da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, da Família e da Propriedade (TFP). Lançada em novembro de 1960, pela editora Vera Cruz, a obra era contundente manifesto contra tudo o que a esquerda defendia para o campesinato no país e contou, também, com a colaboração do bispo de Campos dos Goytacazes, dom Antônio de Castro Mayer. Para dom Sigaud, reformar as estruturas sociais rurais equivaleria a abrir as portas do país ao comunismo. Evidentemente, a publicação impactou os católicos de toda a Arquidiocese, incluindo os de Curvelo e os das cidades circunvizinhas. Mesmo os não leitores eram impactados pelo que ouviam dizer.

Com fogosa oratória, dom Sigaud fazia questão de afirmar no púlpito e pela imprensa: “Se for preciso, este vosso arcebispo irá para a frente de batalha”. E se dizia disposto ao sacrifício do próprio sangue, a fim de impedir, no Brasil, a introdução do socialismo, por ele denominado “regime de Satanás” (10). Sobre essa impetuosidade do prelado e de seu seguidor padre Caio Mário Alvim de Castro, o dos tapetes de arraiolos, o general Carlos Luís Guedes escreveria: “Preocupados com a fé e com os destinos da pátria comum, formam na primeira linha dos combatentes, lúcidos, fortes e destemidos.” (11)

Não era novidade a influência da Arquidiocese de Diamantina em questões políticas ou político-ideológicas. Dom Joaquim Silvério de Souza (1859-1933), sucessor de dom João Antônio dos Santos, segundo seu biógrafo, tinha conhecimento até “dos segredos cochichados nos bastidores da política brasileira” (12). Era íntimo de Olegário Maciel e de outros homens públicos pelos quais, várias vezes, fora convidado a pleitear cadeira no antigo Senado Mineiro. Também um presidente do Estado (13) convidou-o para a Câmara Federal. O bispo, porém, não acedeu a nenhum dos convites, sob a alegação de que não lhe ficaria bem atuar partidariamente. Celso de Carvalho garante, entretanto, que pelo menos três dos últimos governantes mineiros (últimos até 1933, lógico) foram praticamente dirigidos pelo metropolita (14). Dom Joaquim era dono de vasta cultura geral e fazia parte de importantes instituições no exterior, como a Sociedade Internacional de História, sediada em Paris.

Por falar em Paris, onde a expressão “eminência parda” surgiu para designar o capuchinho Joseph du Tremblay, conselheiro do cardeal Richelieu, uma pergunta aqui poderia ser formulada: teria sido dom Joaquim Silvério de Souza eminência parda nas Minas Gerais de seu tempo?

Em 1962, esteve em Curvelo o padre Tomás Enríquez, S.J., autor do livro Em Três Cárceres Comunistas. Na oportunidade, divulgou sua obra e proferiu conferências no auditório do Instituto Santo Antônio. Discorreu sobre o tema O que é o comunismo? Missionário na China durante 23 anos, o jesuíta teria sido expulso daquele país pelo regime discricionário, sob a acusação de “inimigo do povo”. O assunto chamou a atenção dos curvelanos, embora não fosse a primeira vez que se discutia o comunismo chinês na cidade. Cinco anos antes, a questão ganhara espaço na imprensa local, a propósito das declarações de um prelado, para quem, apesar do regime comunista, ainda existia liberdade religiosa naquele pedaço do continente asiático (15). Em suas palestras, padre Tomás reputava “ignominiosa” a doutrina marxista e assegurava que, com toda certeza, ela receberia o repúdio dos brasileiros, principalmente por não se coadunar “com a nossa formação democrática e, sobretudo, cristã”. Depois de discorrer sobre o cerceamento das liberdades, os julgamentos sumários e outras ações ditatoriais do governo chinês, absurdos que teria presenciado ou sofrido na própria pele, o palestrante concluía: “Mais de um terço da humanidade vive sob a ditadura desumana do comunismo. E, não contentes com isso, querem também o Brasil! Se cruzarmos os braços, ainda nos veremos como Cuba, também na parte vermelha.” (16)

Em 1963, prestes a irromper a Rebelião dos Sargentos, aproximadamente cem líderes classistas e políticos de Curvelo publicaram carta aberta ao Congresso Nacional na imprensa curvelana e nos principais jornais do País, entre os quais o Estado de S. Paulo. No documento, as lideranças pediam aos parlamentares e às Forças Armadas que reagissem contra uma espécie de “conjunção pelego-comunista”.

Eis o teor da carta:

 

Os subscritores deste, representando todas as classes deste município, alarmados e revoltados com a atitude do Governo apoiando a conjunção pelego-comunista contra as últimas defesas de nossa democracia, esperam que os representantes da maioria do povo brasileiro e as Forças Armadas tomem posição definida ao lado das nossas conquistas liberais. Todos esperam que ainda seja oportuno um brado de alerta, gritado destes sertões, para despertar desse longo e pesado letargo os responsáveis pela guarda das nossas liberdades, hoje publicamente negociadas no balcão dos traidores da Pátria, em troca desse papel-moeda produzido a jacto como atestado de indigência e imoralidade istrativas. Todos esperam também que do lado bom da nossa gente haja fibra, brio, patriotismo e coragem para desmascarar os negocistas, os velhacos e os aproveitadores que desmoralizam o Brasil e seu governo.” (17)


Ainda em 1963, a partir do fim do ano, já nos preparativos para o golpe, o general Carlos Luís Guedes ou a manter contato permanente com a Polícia Militar de Minas Gerais por intermédio do capitão Paulo Vianna Clementino, do serviço de inteligência do Exército. Clementino – afirma o mestre em História André Gustavo da Silva – “tinha ligações pessoais com membros do setor industrial – principalmente o têxtil – e com oficiais da Polícia Militar, da Aeronáutica e com grandes proprietários de terra da região de Corinto e Curvelo” (18).

 


A CIDADE EM 1964

 

  

Chegou 1964... Que tal reconstituir a atmosfera reinante na época?

Curvelo vivia momentos inesquecíveis nos diversos setores. O Carnaval de rua não esteve lá grande coisa. Apenas o Maria Amália saiu com bloco e carros alegóricos, tudo organizado pelo incansável Luiz Crispim e animado pela orquestra de Zé Reis. O que agitava mesmo a cidade eram as filmagens do conto Viagem aos Seios de Duília, de Aníbal Machado, sob a direção de Carlos Hugo Christensen, da Atlântida, com vários curvelanos nos papéis de somenos importância. O grupo de seresta Zé de Beta realizava aplaudidas apresentações, enquanto o cantor Pedro Mateus gravava em disco a Canção da Criança Defeituosa (hoje o título seria politicamente incorreto), letra da autoria de André Carvalho. Aqui e acolá, nas praças e portas de estabelecimentos comerciais, o filme Bonitinha, mas Ordinária, do ano anterior, baseado em peça homônima de Nelson Rodrigues, suscitava críticas elogiosas e depreciativas, gerava polêmicas, mormente devido à ênfase dada à afirmação atribuída a Otto Lara Resende, aquela de que “O mineiro só é solidário no câncer”. O Grupo Pró-TV introduzia no Município os canais 2 e 4, e a Companhia Telefônica instalava cabines com aparelhos públicos nos bairros. O corpo escultural e o rosto delicado de Ivete Moreira Gomes, a Ivetinha, credenciavam-na aos grandes certames da beleza. A prosperidade acenava para os pequenos comerciantes que, unidos aos graúdos, guindavam o empresário Newton Corrêa à presidência da entidade representativa da classe: a Associação Comercial. Nos bares do Centro, a indignação era com o preço do refrigerante, duas vezes mais alto que em Belo Horizonte. Muitos católicos ainda estranhavam a notícia de que haveria mudança na liturgia da Igreja, em virtude da constituição Sacrosanctum Concilium, emanada do Concílio Vaticano II. Por força desse documento conciliar promulgado em 1963, a missa deixaria de ser em latim e aria a ser em língua vernácula (no Brasil, em português), e o celebrante não mais ficaria de costas para os fiéis. Aumentava o número de crianças no Grupo de Escoteiros São Tarcísio, comandado por José Calazans (Chefe Calazans), o Baden Powell dos sertões mineiros.

Tudo isso e muito mais provocavam enorme efervescência, mas as atenções estariam mais fixamente voltadas para os fatos políticos.

O ano seria marcado, também, pelo que nele deixou de ser realizado. Não se realizou, por exemplo, a tradicional Exposição Agropecuária no Parque Getúlio Vargas, mais tarde denominado Antônio Ernesto de Salvo.

 

 

“ARMAI-VOS UNS AOS OUTROS”

 

 

Em 15 de fevereiro de 1964, no Cineteatro Virgínia, reuniram-se o prefeito, os vereadores, os representantes das entidades de classe do Município e figuras políticas e eclesiásticas influentes no Estado e no País, ao todo cerca de 2.500 pessoas. Escopo da reunião: mobilizar a sociedade para a “guerra anticomunista”, que o arcebispo dom Sigaud apelidava de “guerra santa”, tal e qual a da “libertação do Santo Sepulcro” (19). Fizeram uso da palavra, na ocasião, entre outros, João Calmon, Oscar Dias Corrêa, José Maria Alkmin, Guilherme Machado, Renato Azeredo, padre Pedro Maciel Vidigal e Orlando Vaz Filho. O primeiro a discursar foi o prefeito Evaristo Soares de Paula: “Esta reunião tem por objetivo formar uma trincheira cívica para defender, de arma em punho, se necessário for, não apenas a propriedade privada, mas a liberdade e a própria família brasileira, que estão igualmente ameaçadas nesta hora difícil que atravessa o país.” (20)

Em seguida, postou-se diante do microfone o padre Pedro Maciel Vidigal, cujo discurso ainda é dos mais lembrados em virtude do trocadilho com as palavras do Evangelho de Cristo: “ARmai-vos (sic) uns aos outros!”, gritou ele do palco do Virgínia.

Político, professor e escritor, padre Vidigal, como era mais conhecido, nasceu em 1909, em Calambau, distrito de Piranga, atual Presidente Bernardes, onde morreu em 2006. Vinha de família tradicional da classe média. Seu pai, Feliciano Duarte Vidigal, era próspero comerciante. Estudou no Seminário de Mariana. Ordenado sacerdote, teve fortes ligações com a caserna. Depois de ser capelão do 11º Regimento de Infantaria do Exército em São João del-Rei, assumiu a capelania militar na Ilha de Fernando de Noronha. “Armai-vos uns aos outros!” Esse o apelo dirigido por ele aos ruralistas, pequenos produtores e comerciantes:

 

ARmai-vos uns aos outros com todas as armas que fordes capazes de manejar na defesa de vossas famílias, de vossas propriedades ameaçadas pelos comunistas que se tornaram donos da Superintendência de Planejamento e Reforma Agrária – SUPRA. Quem não sabe matar ou morrer em defesa da família não merece a honra de chefiá-la. E quem, na defesa de sua propriedade, não sabe matar ou morrer, não tem nem terá a mínima condição de ser proprietário. ARmai-vos uns aos outros contra este governo que está desgraçando o Brasil, pois já permitiu a infiltração dos comunistas nos postos-chaves da política e da istração da República... Armai-vos uns aos outros para a salvação do país.” (21)

 

Além da contundência de padre Vidigal com o “ARmai-vos uns aos outros”, repetido em outras cidades, fez-se ouvir a candente alocução de dom Geraldo de Proença Sigaud. No início, o religioso concedeu a bênção arquiepiscopal à possível luta armada: “Quando a força está a serviço do direito – argumentou o prelado – é hora de nós, bispos e padres, benzermos as carabinas, os revólveres e as balas.” (22)

Terminado o encontro no Virgínia, as lideranças dirigiram-se à casa do presidente da Liga Anticomunista, o médico Benjamin Jacob de Souza. Lá tiveram nova reunião. O objetivo? Decidir quais providências seriam tomadas contra o comício pró-reformas agendado para o dia seguinte em Corinto. Pensaram numa caravana de cem pessoas, distribuídas em 20 automóveis, para auxiliar na dissolução do evento, mas mudaram de ideia porque os correligionários da cidade vizinha chegaram à conclusão de que dariam conta do serviço sozinhos. E deram; do jeito deles, mas deram.

No opúsculo Corinto na Revolução de 31 de Março – Subsídios para a História, Joel Ayres Bezerra, então prefeito de lá, contou que o comício acabou em tempo-quente. Quem primeiro falou foi o secretário do partido, Jaci Santos Magalhães. Em seguida, subiram à tribuna do Centro Operário, outrora existente onde é hoje a Casa de Cultura, os representantes dos sindicatos de Montes Claros e Curvelo. Em quarto lugar, pronunciou-se Benedito Vieira, ex-delegado do Tesouro em Minas. Este, em arroubo de oratória, apregoou que “as reformas seriam feitas mesmo à bala”. Ah, pra quê? Foi o estopim para distúrbio daqueles. O pronunciamento desencadeou reação enérgica por parte do coronel José Brígido Pereira Pedras. Aos gritos de “balas, os democratas também as temos para defender a Constituição”, José Brígido iniciou tiroteio para o alto. Apagaram-se as luzes, e móveis foram quebrados. Os últimos oradores inscritos, deputado Múcio Ataíde e Raimundo Lima, que havia sido chefe do Executivo e voltaria a ser, ficaram impossibilitados de falar. A polícia teve de intervir para restabelecer a ordem no recinto (23). Segundo a revista CN – Curvelo Notícias, a primeira-dama de Corinto, Orminda Nery Bezerra, por telefone, teria tranquilizado as lideranças de Curvelo nestes termos: – “Não precisa se preocupar, não, gente. Acabamos com o comício daqui. Eles saíram correndo como ratos. José Brígido foi quem deu o primeiro tiro contra os comunistas.” (24

Vale ressaltar que Curvelo não agiu em articulação apenas com Corinto. Em seu relato O Golpe de 64, o jornalista e escritor Geraldo Elísio, que se encontrava em Sete Lagoas trabalhando como radialista, conta que, no auge da convulsão política, foi entrevistar o então prefeito, Vasconcelos Costa, e o encontrou a disparar telefonemas para aliados, “principalmente para Evaristo de Paula, o colega de Curvelo”. Segundo o autor de Baú de repórter, ao chegar à prefeitura sete-lagoana, teve metralhadora apontada em sua direção. Sereno, disse ao homem com a arma: “Calma, sou eu mesmo. Você me vê todo dia”. O homem baixou a arma, e Geraldo Elísio pôde entrar para a entrevista (25). Em Tinha que ser Minas, o general Carlos Luís Guedes também se refere à ação conjunta das cidades de Curvelo, Corinto e Sete Lagoas: “A Curvelo e Corinto se juntara Sete Lagoas, cujo prefeito municipal, Vasconcelos Costa, desde a conspiração, se colocara decididamente ao lado dos comandos da ID-4 e da Polícia Militar.” (26).

De volta ao clima de tensão em Curvelo, convém transcrever relato do ótimo livro De Banqueiro a Carvoeiro, do memorialista Lúcio Flávio Baioneta.


No dia 30 de março, a cidade já estava em pé de guerra. Gente andando mais depressa que nos outros dias. Mantas de carne charque e de toucinho salgado sendo guardadas, assim como a farinha, o arroz e o feijão. A Farmácia Jota ficou quase sem mercurocromo, água oxigenada, esparadrapo, algodão e gaze. As pílulas de vida do Dr. Ross e o sal de fruta Eno tinham acabado havia mais de quinze dias. Muito pano branco em tiras foi lavado. Gasolina era pouca. Diesel quase não existia. Querosene Jacaré também estava no fim. A pólvora, o chumbo e as espoletas de ouvido, vendidos na Casa Levindo, não tinham nem para remédio. Tudo tinha acabado.” (27)


 

O TRIUNFO DA CONSPIRAÇÃO

 

 

Em 31 de março de 1964 para uns, ou em 1º de abril do mesmo ano para outros, o golpe civil-militar triunfou.  

Sobre a divergência no tocante a esta ou àquela data fixa, observe-se o comentário do pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos Contemporâneos da Universidade Federal Fluminense, Paulo César Gomes: “Se fizermos uma reflexão histórica mais apurada, vamos ver que a definição de uma data específica para o golpe é desnecessária. O golpe não aconteceu em um único dia. Ele foi um processo.” (28

Em Curvelo, vitoriosos os conspiradores, o Comando Revolucionário (sim, houve isso) ocupou o prédio da Sociedade Rural, atualmente Associação Mineira dos Criadores de Zebu (AMCZ), então na Rua Prefeito Irineu Moreira Gonzaga, nº 90, e para lá começou a conduzir, presos, os políticos e líderes classistas e sindicais acusados de ativismo comunista. Seriam interrogados pelo capitão Antônio Carlos Thompson Thomé. Todo o efetivo policial foi mobilizado. Os membros da Liga Anticomunista transformaram-se em patrulheiros. Voluntários e mais voluntários se apresentaram para conter o possível avanço de “forças organizadas”.

O Tiro de Guerra 04029, convocado para colaborar, seguiu as instruções do sargento Raimundo Umbelino de Lima. Eram 113 rapazes. Entre eles, três com os quais conversei: José Arnoldo Vieira de Araújo (professor), Paulo Antônio Miranda Pinto (produtor rural) e Sebastião Nagib Salomão Filho (médico e ex-prefeito). Eles me relataram que os atiradores se dividiram na segurança do prédio da Sociedade Rural e na revista de veículos na BR 040, perto de São José da Lagoa, notadamente no Trevão. De acordo com doutor Sebastião, os soldados do TG portavam fuzis descarregados. “Era só para impor respeito. Afinal, não tínhamos experiência alguma com armas”, assegurou. José Arnoldo recordou o desespero dos familiares dos atiradores, em especial das mães, pois a noticia corrente era a de verdadeira guerra em fase inicial.

Ainda no aceso dos acontecimentos, o prefeito doutor Evaristo de Paula, que já tivera o cuidado de “bloquear o consumo de combustíveis, garantindo os superiores interesses do transporte”, baixou o Decreto Nº 02/64, estabelecendo, no Art. 1º, três dias de feriado:

 

Art. 1º - Fica decretado feriado municipal em Curvelo o dia de hoje e, bem assim, os dias primeiro e dois de abril próximo vindouro, como demonstração da fidelidade de seu povo à democracia.” (29)

 

Muitos eventos políticos marcariam o feriado de três dias, dentro e fora do Município. Em Brasília, o presidente do Congresso Nacional, senador Auro de Moura Andrade, declarou vaga a Presidência da República. Detalhe: João Goulart ainda se encontrava em território nacional. Logo o presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, enviou telegrama de saudação ao novo governo do Brasil, interinamente entregue ao deputado Ranieri Mazzilli. Em Curvelo, na ocasião, a sociedade saiu às ruas, rosário mariano em punho, na “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. A marcha curvelana realizou-se após o triunfo da conspiração. À frente do cortejo, uma imagem de Nossa Senhora sob a invocação de Fátima.

A escolha da santa não se deu de forma aleatória. Como se sabe, as aparições da Virgem Maria em Fátima, Portugal, terminaram justamente quando começava, na Rússia de Stalin, a “Revolução” que resultou na morte de Nicolau II e na eliminação do czarismo. Nossa Senhora, segundo contam, ao aparecer pela terceira vez aos pastorinhos Lúcia de Jesus, Francisco e Jacinta Marto, teria previsto o surgimento e a expansão do comunismo russo, fazendo sérias advertências à cristandade. Em 1961, dom Geraldo de Proença Sigaud já havia chamado a atenção dos curvelanos para a proximidade entre o evento de Portugal e o da Rússia. Dirigindo-se aos operários, na segunda pessoa do plural, o arcebispo teceu estas considerações:


Notai bem: quando o demônio desfraldava a sua bandeira de sangue na estepe da Rússia, em 1917, no mês de outubro, neste mesmo mês terminavam as aparições de Nossa Senhora de Fátima no outro extremo da Europa. Duas bandeiras desfraldadas: a bandeira branca da Virgem Maria em Portugal e a bandeira de sangue do demônio na Rússia.” (30)


Sobre a Marcha da Família em terras curvelanas, precedeu-a missa vespertina, celebrada em frente à antiga agência da Ford, no local onde atualmente se vê o Hipermercado Marques Center. Dali os manifestantes saíram em eata. Automóveis transportavam integrantes das ligas anticomunistas, e estes portavam faixas e cartazes com palavras de ordem. Fazendeiros, montando cavalos, formavam filas ao longo das vias públicas. O cortejo seguiu rumo à Praça Tiradentes. À porta da Matriz de Santo Antônio, estava armado o palanque no qual discursaram várias personalidades: Evaristo Soares de Paula, prefeito anfitrião; Dalton Canabrava, deputado estadual (falou em nome dos anticomunistas de Curvelo, Augusto de Lima, Inimutaba e Monjolos); José Maria de Alkmin, deputado; José Geraldo de Oliveira, representante do governador, Magalhães Pinto; José Brígido Pereira Pedras, presidente da Liga Anticomunista de Corinto; almirante Sílvio Heck, representante das Forças Armadas; dom Geraldo de Proença Sigaud, arcebispo metropolitano de Diamantina; padre Pedro Maciel Vidigal, deputado federal; José Dalle Mascarenhas, representante de Caetanópolis e Paraopeba (31).



OS DESDOBRAMENTOS



Com a vitória dos conspiradores, teve início o esquema de repressão. Em Curvelo, foram presos o médico e intelectual Vianna Espeschit, o sindicalista José Teófilo da Silva, o funcionário público estadual e ex-vereador José Smith Xavier e o servidor da Secretaria de Estado da Agricultura Alcides Martins do Rego. 

Assustado, Alcides Marins do Rego tentou suicídio e, depois, para evitar novos dissabores, escreveu um Método Simples e Prático de Combate ao Comunismo. “Foi para deixar bem clara minha verdadeira posição ideológica”, declarou em entrevista a mim concedida, meses antes de morrer, em sua casa, no bairro Bela Vista, esquina da avenida Renato Azeredo com rua Abraão Lincoln. Era homem de hábitos simples, mas de inteligência privilegiada. Sagrou-se vencedor em concurso da revista Seleções Reader’s Digest, com artigo sobre as Rapsódias Húngaras, do compositor austríaco Franz Liszt. Lembro-me de suas colaborações em O Momento Regional, de Nilson Gonçalves.

Doutor Vianna Espeschit foi encaminhado ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e, em seguida, transferido para a Base Aérea de Lagoa Santa, onde permaneceu sob custódia. Descreveu o cárcere como “abjeto e de todo incompatível com a dignidade humana”. Segundo ele, era impossível dormir, pois, durante a noite, obrigavam-no a se manter de pé, com água suja e malcheirosa até o pescoço. “Na prisão, não havia amigos; apenas companheiros de infortúnio. O ambiente não proporcionava o surgimento de amizades. O ambiente, enfim, era de uma promiscuidade de pocilga” (32), afirmou em discurso na Câmara de Vereadores, ao receber a cidadania honorária. Mestre com o qual tive a honra de conviver em minha adolescência, Vianna Espeschit era ainda jornalista (Minas Gerais, Estado de Minas), escritor, professor universitário, poeta, conferencista e historiador.

José Teófilo da Silva, presidente do Sindicato dos Tecelões por anos seguidos, recebeu voz de prisão em casa. Prestou depoimento ao capitão Thompson Thomé e seguiu escoltado para Belo Horizonte. Mantiveram-no sob custódia no Regimento de Infantaria. Teve seus direitos políticos cassados e só os veria restabelecidos décadas depois. Entre os feitos marcantes de sua atuação como sindicalista, destaco a criação de ginásio cujo corpo docente era formado pela nata da intelectualidade local. João Mourthé Sampaio, monsenhor Paulo Vicente de Oliveira e Wanda de Paula Mourthé entre os professores. Os alunos? Os próprios operários e seus filhos. Detalhe: ninguém cobrava para lecionar. Ah, o principal elo entre o Sindicato sob a presidência de José Teófilo e a imprensa carioca, razão das notícias a que me referi no tópico Os Antecedentes, era Sinval de Oliveira Bambirra, líder trabalhista, presidente da Federação dos Tecelões de Minas Gerais e deputado estadual.

José Smith Xavier, conheci-o bem, pois ele prestava assessoria à Regional do Departamento de Estradas de Rodagem (DER), onde meu pai, Raimundo Cândido Vieira, exercia cargo de chefia. Era, portanto, comum a presença dele em minha casa quando eu começava a me entender por gente. Durante anos, eu o imaginei advogado, talvez porque até suas falas mais corriqueiras do dia a dia ressumbrassem conhecimentos jurídicos. Preciso ao citar, de cor, diferentes dispositivos constitucionais, ganhou a fama de legislador por excelência. Exerceu a vereança de 1955 a 1959, de 1959 a 1963 e de 1967 a 1971. No último mandato, estava filiado ao MDB, mas, nos dois anteriores, pertencia ao PTB. Em algumas ocasiões, lançou-se candidato a prefeito, não conseguindo êxito nas urnas. Acredito que sua vinculação à mesma sigla de Jango o tenha transformado em alvo dos militares.

Além dos citados, outros cidadãos curvelanos ficaram em situação delicada ou também se viram privados da liberdade. O professor de História Osvaldo Pereira de Souza, estribado em narrativa oral de Virgílio Batista do Nascimento (1926-2013), o Nuna Batista, memória viva do bairro Maria Amália, conta que a polícia esteve na fábrica da Cia. Othon Bezerra de Mello para efetuar a prisão de operário militante do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e irador declarado de Leonel Brizola. Encontrou, porém, a resistência do chefe da Tecelagem, Oscar Assis Diniz Couto (1911-1986), senhor Oscarzinho: “Não permitirei invasão nas dependências da fábrica para prender nenhum funcionário, a não ser que me prendam primeiro.” (33

No Rio de Janeiro, Mário Paris teve seus direitos políticos imediatamente cassados, mas conseguiu recobrá-los em pouco tempo.  Ligado à esquerda, o artista curvelano trabalhava no Plano Nacional de Alfabetização (PNA), seguindo as diretrizes de Paulo Freire. Cantor lírico aprovado em concurso para o coro do Theatro Municipal, enfrentou ciclópica dificuldade para tomar posse. Seus irmãos David e Lúcio também foram acusados de subversão. David de Paula Bispo, o mais velho, membro do movimento estudantil e doutorando em Economia Política, não demorou a ser preso. Soltaram-no dois meses depois porque o consideraram inocente útil. Já Lúcio de Paula Bispo se tornaria prisioneiro em 1968. Ele presidia a Federação das Associações das Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ), tendo como secretária a futura deputada Benedita da Silva. Importante líder comunitário, Lúcio contou primeiro com o e da freira dominicana sa René Delorme, irmã da atriz Danièle Delorme, e de dom Hélder Câmara, exatamente por isso cognominado “O Arcebispo das Favelas” já no título da obra de Roger Bourgeon. Entrevistado por Eladir Fátima Nascimento dos Santos, Lúcio itiu laços com o Partidão, e isso deve ter pesado enormemente contra ele:


Durante trinta anos eu briguei bastante. Eu era assessorado pelo Partido Comunista, e o representava na Federação. Antes dos Congressos e após os seminários, eu recebia as cartilhas para ler e ver o que eu podia inserir nas pautas que iam ser discutidas. Nós tínhamos o apoio dos estudantes, funcionários públicos, metalúrgicos. Todos eles se reuniam conosco na Federação. Nós não tínhamos uma sede. Era uma sede itinerante, cada dia a reunião acontecia em um barraco.” (34)


Arnaldo Mourthé, então engenheiro da Construtora Mello Azevedo, supervisionava obras, quando a Polícia Rodoviária Federal lhe deu voz de prisão em Betim, na Rodovia Fernão Dias, sob a alegação de que seu nome constava em lista de pessoas consideradas subversivas. Interrogado e mantido sob vigilância, ficou proibido de deixar Belo Horizonte. Só não continuou atrás das grades, nesse primeiro momento, por causa da influência do doutor Celso Mello de Azevedo, tio de sua mulher, Marília Rocha Mourthé. Com medo das perseguições em Minas, pegou a estrada para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava seu irmão Dirceu Mourthé. Não conseguindo contato com o irmão, resolveu ir visitá-lo, sem saber que ele já estava preso havia três dias. O apartamento de Dirceu era vigiado, e Arnaldo, quando lá chegou, sofreu novo encarceramento. Ambos conheceram a tortura e somente foram libertados 101 dias depois, mediante habeas corpus.

Em 1969, com o endurecimento trazido pelo A-I5, os irmãos curvelanos Arnaldo e Dirceu partiram rumo ao exílio. Fugiram de carro para o Uruguai. De lá seguiram para o Chile e para a Argélia, onde os familiares iriam encontrá-los (35). O retorno ao Brasil só seria possível com a Lei 6.683, a Lei da Anistia, de 28 de agosto de 1979.


O LADO CÔMICO DA HISTÓRIA


Em meio àquela tensão política, fatos jocosos ou folclóricos se verificaram na cidade. Vou contar dois. O primeiro envolve o pescador Juquita Pacamão. Para narrá-lo, baseei-me em capítulo do mencionado livro De Banqueiro a Carvoeiro, de Lúcio Flávio Baioneta, contador de ‘causos” da melhor qualidade. O segundo serve para trazer de volta um dos mais interessantes personagens da história da cidade: João Thomaz dos Santos, vulgo Bacalhau.  

JUQUITA PACAMÃO – Retornando de pescaria no Rio das Velhas, já receoso de a confusão política transformar-se em conflito armado, Juquita ouviu, pelo rádio, notícias de um comício pró-reformas na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e ou a nem dormir direito de tanta preocupação. Tinha medo de muita coisa, especialmente de o comunismo ser de fato implantado no país, com o confisco de ativos financeiros e o fechamento de bancos. Para deixá-lo ainda mais preocupado, chegou telegrama endereçado ao doutor Dalton Moreira Canabrava, líder dos políticos e dos membros do Clube dos Caçadores de Curvelo (CCC). Eis o teor da mensagem: “Cabe ao corajoso CCC vg sob seu destemido comando vg deter vigoroso avanço tropas comunistas pt local do combate serah no Trevao pt cave trincheiras pt resista ateh ultimo homem pt Gal. Morão Filho” (36). Pois bem. Mesmo antes de tomar conhecimento dos termos do telegrama, a turma começou a espalhar pela cidade que a guerra havia começado. Caminhões e jardineiras partiram lotados para a tal guerra, rumo ao Trevão, ao som de tiros de espingardas e revólveres, foguetes e rojões. Segundo Baioneta, eram cerca de 150 “combatentes”. Eles ficaram “entrincheirados” por uma semana, período em que fizeram churrasco e beberam cerca de 600 litros de cachaça. Os dias se sucederam, e nem sinal de integrantes do Grupo dos Onze ou das Ligas Camponesas. Nenhum comunista deu o ar da graça. Então os “combatentes” decidiram pausar as atividades, mas desta forma: um grupo aria o fim de semana em casa, para colocar os negócios e a vida familiar em dia, enquanto outro permaneceria alerta nas trincheiras. Assim combinado, parte dos bravos ‘guerreiros” se dirigiu à cidade com a promessa de regressar ao teatro de operações na segunda-feira. Entre eles, Juquita Pacamão. Na manhã da segunda, todos os liberados para a folga apresentaram-se para o retorno à “guerra”, com exceção do Juquita. Esperaram, esperaram, e nada dele.  Resolveram então buscá-lo em casa. Certamente havia dormido além da conta e perdido a hora. Chamaram-no à porta, buzinaram, bateram na janela por longo tempo. Nada de ele atender. ados alguns minutos, Juquita abriu a janela, visivelmente sonolento, e, ao ser lembrado do compromisso bélico, desfechou com esta reposta sensacional: – “Guerra numa hora dessas? Quá, gente! Eu não vou guerrear hoje de jeito nenhum. Tem dó. Essa guerra tá acabando comigo. Vou não. Nem morto”. Dito isso, fechou a janela. Vai ver até caiu de novo nos braços de Morfeu. Moral abatido pela decisão de Juquita, os “bravos guerreiros” depam as armas. 


LÊNIN ERA PONTA-DIREITAOutro fato dos mais hilários teve como protagonista João Thomaz dos Santos, mais conhecido pela alcunha de Bacalhau. Nascido na Bahia, na cidade de Juazeiro, a 6 de março de 1930, Bacalhau faleceu em Curvelo, a 2 de abril de 1977. Em solo curvelano, fixou residência, constituiu família e exerceu diversas atividades. Auxiliar de enfermagem do Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência, o hoje extinto SANDU, levava vida social agitada. Dançava como poucos e arrancava aplausos nos salões, sobretudo quando fazia par com Elza Cobu. Era também seresteiro, carnavalesco e jogador de futebol. Por falar em futebol, ganhou na Loteria Esportiva, levou ônibus lotado de amigos ao Rio de Janeiro, tudo a suas expensas, e adquiriu bar na zona boêmia. Terminou, porém, falido. A causa da falência? Sua generosidade excessiva com as “meninas” da noite, segundo alguns contemporâneos. Filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), elegeu-se vereador e cumpriu mandato de 31 de janeiro de 1973 a 30 de janeiro de 1977. Em 1964, esse baiano boa-praça, sempre aliado a políticos da esquerda, embora não tivesse ideologia alguma, andou às voltas com os militares. Acabou preso e levado para dar explicações ao assim chamado Comando Revolucionário. Denunciaram-no como apologista do comunismo soviético. O capitão Thompson Thomé, partindo das informações constantes da denúncia, foi logo perguntando: – “Senhor João, o que tem a me dizer sobre Lênin? Quem foi Lênin para o senhor">


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